quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Autocarro (II)

Entrou no autocarro. Era uma confusão de braços e pernas em luta com vários sacos e uma mala; se calhar os sacos e a mala também já eram uma espécie de braços e pernas, tudo lutava contra o movimento do homem, tudo pesava, e os dedos, de tão crispados, eram as novas articulações. Lutou contra o corredor do autocarro, contra o seu peso e contra o peso daqueles membros todos até ao primeiro lugar livre. Carinhosamente, começou a pousar os sacos e a mala numa ordem: metade dos sacos, no meio a mala, restantes sacos: agora, os braços e pernas postiços eram filhos pequenos. O autocarro balouçava e curvava e os filhos escorregavam do lugar para o corredor, a mala virava-se, o homem não se sentava e repetia o processo de arrumação e o autocarro balouçava mais e tudo se repetia e o homem continuava naquela luta corpo a corpo contra os movimentos do autocarro; cada vez que lhe parecia ter vencido e tentava sentar-se, o autocarro roncava, imperturbável, impiedoso, e atirava os filhos do homem para a desorganização. Chegámos à paragem terminal, O autocarro parou. O homem organizou os sacos e a mala na ordem que desejava. E sentou-se, muito contente. E eu até queria rir. Mas depois perguntei-me quantas vezes teremos persistido em determinada acção, muito para além de qualquer janela temporal da utilidade, completamente dominados pela força da necessidade de conclusão? Sentimos a linha desamparada na angústia de não lhe oferecermos um ponto final?

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Entrou no autocarro...

Entrou no autocarro. Sentou-se. Agitava-se, esfregava as mãos, abanava as pernas, sacudia o olhar. Na paragem seguinte, suspirou com tanta força que duvido que tenha sido ar o que expeliu; seja o que for, ficou no corredor do autocarro. Levantou-se num impulso, atravessou o autocarro a correr, a correr muito, e saíu pela porta da frente. Continuou a correr. Pensei que estivesse a fugir do que tinha expirado, certamente sabia que, fosse o que fosse, estava ali naquele corredor de autocarro, provavelmente a procurar nova vitima, entre os incautos passageiros, para trespassar: determinados estados de alma, são, tenho a certeza, perigosamente contagiosos, especialmente quando se sentem abandonados pelo portador. Na paragem seguinte, vi que já lá estava, voltou a entrar no autocarro, sentou-se no mesmo lugar. Nos braços: sossegou. Nas pernas: sossegou. Nos olhos: sosssegou. Pensei em replicar o exercício mas tenho a certeza que só ía perder o autocarro, nunca consegui contagiar as minhas pernas com a energia do meu pensamento.