quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Mendigos


Já não temos Mãe nem Pai.
Em que dia nos morreu a infância
e nos tornámos os obedientes filhos
do tempo e dos espelhos?
Em que dia nos morreu o céu
e nos tornámos enteados maltratados,
danificados, crianças-mendigo
de mãos constantemente estendidas
à espera de um raríssimo beijo
dos nossos novos educadores?

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Esperar


Quando vem
chega contra o corpo e o peito contém

a memória da pele
a memória da tua pele
a memória inscrita, cravada, marcada, da pele dele
na minha pele

Mas não vem
contra o corpo do tempo, não ganha ninguém

nem a memória da pele
nem a memória da tua pele
nem a memória ofegante, beijada, suada, da pele dele
na minha pele

Quando não vem
Talvez seja a memória que o retém.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Tu Sabes Bem

Sabes bem a quem bem me sabe

Ao sabor da sua vontade

Sabes bem
E eu sei que bem que sabes

Que

Sabes tão bem

Que sabes a amor

E sabes-me ao sabor

do amor de mais ninguém.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Pré-Poema Alma

Um dia,
ainda te deixo tanta alma
num poema
que não sobra nenhuma para mim.

E morrerei sem ter um fim
e sem ter um eu e nesse dia
serei metade poema e metade poesia.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Pré Poema Mariana

Espera, por favor, escuta-me Mariana,
sim, sim,eu sei que já não respondes,
mas talvez ainda te ouça explicar, Mariana,
onde é que me moram as saudades.

Onde é que moram as saudades?
Numa casa demasiado pequena,
uma brancura surda e muda nas paredes,
(tantas paredes, sempre demasiadas paredes)
não há chuva, nem vento, nem Sol, nem neve.
nem perto, nem longe, nem longo, nem breve

o tempo, neste corpo a corpo com o agora,
não há chuva, nem vento, nem Sol, nem neve
nem perto, nem longe, nem longo, nem breve
aqui dentro não estás, Mariana, e lá fora,
já não há mais, não há mais quem me leve.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Frios

Posso culpar o Outono, posso culpar a Primavera,
Posso culpar o Inverno, ou até mesmo culpar o Verão,
mas todo o frio que faz lá fora,
desde que o Amor se foi embora,
nasce dentro do meu coração.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Autocarro (II)

Entrou no autocarro. Era uma confusão de braços e pernas em luta com vários sacos e uma mala; se calhar os sacos e a mala também já eram uma espécie de braços e pernas, tudo lutava contra o movimento do homem, tudo pesava, e os dedos, de tão crispados, eram as novas articulações. Lutou contra o corredor do autocarro, contra o seu peso e contra o peso daqueles membros todos até ao primeiro lugar livre. Carinhosamente, começou a pousar os sacos e a mala numa ordem: metade dos sacos, no meio a mala, restantes sacos: agora, os braços e pernas postiços eram filhos pequenos. O autocarro balouçava e curvava e os filhos escorregavam do lugar para o corredor, a mala virava-se, o homem não se sentava e repetia o processo de arrumação e o autocarro balouçava mais e tudo se repetia e o homem continuava naquela luta corpo a corpo contra os movimentos do autocarro; cada vez que lhe parecia ter vencido e tentava sentar-se, o autocarro roncava, imperturbável, impiedoso, e atirava os filhos do homem para a desorganização. Chegámos à paragem terminal, O autocarro parou. O homem organizou os sacos e a mala na ordem que desejava. E sentou-se, muito contente. E eu até queria rir. Mas depois perguntei-me quantas vezes teremos persistido em determinada acção, muito para além de qualquer janela temporal da utilidade, completamente dominados pela força da necessidade de conclusão? Sentimos a linha desamparada na angústia de não lhe oferecermos um ponto final?

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Entrou no autocarro...

Entrou no autocarro. Sentou-se. Agitava-se, esfregava as mãos, abanava as pernas, sacudia o olhar. Na paragem seguinte, suspirou com tanta força que duvido que tenha sido ar o que expeliu; seja o que for, ficou no corredor do autocarro. Levantou-se num impulso, atravessou o autocarro a correr, a correr muito, e saíu pela porta da frente. Continuou a correr. Pensei que estivesse a fugir do que tinha expirado, certamente sabia que, fosse o que fosse, estava ali naquele corredor de autocarro, provavelmente a procurar nova vitima, entre os incautos passageiros, para trespassar: determinados estados de alma, são, tenho a certeza, perigosamente contagiosos, especialmente quando se sentem abandonados pelo portador. Na paragem seguinte, vi que já lá estava, voltou a entrar no autocarro, sentou-se no mesmo lugar. Nos braços: sossegou. Nas pernas: sossegou. Nos olhos: sosssegou. Pensei em replicar o exercício mas tenho a certeza que só ía perder o autocarro, nunca consegui contagiar as minhas pernas com a energia do meu pensamento.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

(In)(cons)ciência

Perguntam se morri...
Ora, como hei-de eu saber?
Alguma vez, algum morto
vos declarou conhecimento de tal facto?

Perguntam se morri...
O que acham, estarei a viver?
Agora morte, agora parto,
primeira cena, último acto?

Perguntam se morri...
Sei lá de mim o que morrer...
que parte corpo, que parte abstracto
perdi os dedos ou só o tacto?

Sim, Perguntam se morri,
mas não perguntam se me mato.






terça-feira, 14 de fevereiro de 2012