quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Autocarro (II)

Entrou no autocarro. Era uma confusão de braços e pernas em luta com vários sacos e uma mala; se calhar os sacos e a mala também já eram uma espécie de braços e pernas, tudo lutava contra o movimento do homem, tudo pesava, e os dedos, de tão crispados, eram as novas articulações. Lutou contra o corredor do autocarro, contra o seu peso e contra o peso daqueles membros todos até ao primeiro lugar livre. Carinhosamente, começou a pousar os sacos e a mala numa ordem: metade dos sacos, no meio a mala, restantes sacos: agora, os braços e pernas postiços eram filhos pequenos. O autocarro balouçava e curvava e os filhos escorregavam do lugar para o corredor, a mala virava-se, o homem não se sentava e repetia o processo de arrumação e o autocarro balouçava mais e tudo se repetia e o homem continuava naquela luta corpo a corpo contra os movimentos do autocarro; cada vez que lhe parecia ter vencido e tentava sentar-se, o autocarro roncava, imperturbável, impiedoso, e atirava os filhos do homem para a desorganização. Chegámos à paragem terminal, O autocarro parou. O homem organizou os sacos e a mala na ordem que desejava. E sentou-se, muito contente. E eu até queria rir. Mas depois perguntei-me quantas vezes teremos persistido em determinada acção, muito para além de qualquer janela temporal da utilidade, completamente dominados pela força da necessidade de conclusão? Sentimos a linha desamparada na angústia de não lhe oferecermos um ponto final?