sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Sentinela

Cuidaremos da nossa eternidade
como se cuida de um livro
O nosso tempo trespassará

as margens das páginas
e o amarelo de cada Sol
um dia, repousará
mas entranhará as horas e as linhas
de tantas recordações.
Lá fora, a idade espreita-nos,
sempre de sentinela, embala-nos
a capa do amor que amadurece
mas nunca, nunca
aprenderá a envelhecer.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Passagens

Todos os ponteiros e todos os degraus
são intransigentes.
Os ponteiros empurram os dias
são a força de cimento e betão do tempo.
Os degraus nunca se apiedam, nem descem,
são a mármore inviolável
extraída na direcção e medida do caminho.
E nós? Subimos os degraus,
pasmados com os passos de uma vida
debaixo dos ponteiros

pasmados com tantos ecos, nas arcadas,
são ecos dos fantasmas de todos os minutos
que condenámos à morte por embotamento.
Tudo passa, tudo passa:
eu não quererei passar mais
sem que tudo esteja terminado.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Mundoer

Perdão a quem lendo
não me consegue entender
nem eu bem entendo
o que estou a escrever.
Já não tenho, em mim, lugar
ou casa onde guardar
tanta dor
por favor
escrevo. Talvez alguém lendo
me saiba dizer
como posso eu viver
neste furacão tremendo.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Desenho desanimado

Talvez existissem menos dilemas
Talvez existissem menos guerras
Talvez existissem menos fomes
 Talvez existissem menos doenças
Talvez existisse menos solidão
Se o Mundo tivesse legendas
em vez de ter armas
Se o Mundo tivesse legendas
em vez de ter terras
Se o Mundo tivesse legendas
em vez de ter nomes
Se o Mundo tivesse legendas
dos livros para crianças
Se o Mundo tivesse legendas
do nosso coração
Por isso escrevo a emoção
e estas são as minhas legendas.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Racionalizar/"Emocionalizar"


Julgo que nunca perdi as emoções; julgo que, na maioria das vezes, só me perdi das emoções. Embora elas nasçam no centro mais centro do eu, o meu nevoeiro perceptivo faz-me perder o Norte e, quando as tento abraçar, viro-me para o lado errado e acabo abraçada ao vazio. É por isso que gosto mais das emoções que gritam - não, não são necessariamente as mais fortes, devem ter voz por outro motivo qualquer que ainda não encontrei - mesmo que mordam, mesmo que rasguem, mesmo que doam muito: não há nada pior que o abraço do vazio, não há nada pior do que ficar pendurada no nada, num tic sem tac, não há nada pior que não conseguir ligar-me ao Mundo quando a emoção não faz a ponte e tentar, quase sempre em vão, inventar a emoção adequada, porque não sei qual é a minha. Racionalizar é muito fácil; emocionalizar é um labirinto sem esquerda nem direita, sem pontos de referência, nevoeiro cerrado entre o eu e a luz. Deve ser por isso que escrevo, é como se criasse veias de linhas por onde circulo as emoções montadas em palavras para fora de mim. E, fora de mim, consigo ler-me melhor, consigo ler o mundo melhor... Acho eu... Eu chamo-me Ana e julgo que o nevoeiro que me faz cega ao mundo, sem ser cega, que me faz surda ao mundo, sem ser surda, que não me deixa emocionalizar como processo inconsciente, não está entre mim e mundo, está entre o eu e o mim.

domingo, 31 de julho de 2011

Grécia: eu má, os homens maus...


Há, afinal, vários intervenientes nesta história mágica do por-do-sol. O céu exposto a nu rende-se à noite, ela que o viole nas mais diversas direcções. O Sol, furioso com a traição do azul, lança fogo ao horizonte. O escuro é tão liquido na noite que nos chega aos olhos e dilui as chamas num alaranjado que se apaga. Todo este mar se lança na água dos rios, mergulham todos de mão dada. Tudo isto acontece submerso mas a água ri-se e garante-nos que é apenas reflexo, que nada ali acontece de verdadeiramente importante, nenhum espelho é real. Como se a água não soubesse que, quanto menos água temos, mais secamos. Como se a água não soubesse que nos vive ou nos deixa morrer. Há quem viva com muito pouca água, há humanos que são quase todos sólidos, como as pessoas que estão a filmar o por do sol porque lhes ensinaram a lista de coisas que nos devem fascinar ao ponto de serem filmadas. Mas não filmam os homens maus que vivem na casa do elevador do telhado. Os homens que vivem na casa do elevador são feios e sujos e fugiram da terra deles, fugiram do medo e da fome e da miséria e trazem tudo e mais o horror pendurados nas pestanas, por isso devem ser maus. Também moram muitos naquele espaço tão pequeno, por isso devem ser maus. Também fugiram da miséria das suas próprias ruas para passearem a miséria nestas ruas doutros, por isso devem ser maus. A cor diferente da pele deles é feia e suja e tem outro cheiro que lhes sulca a expressão do rosto, metem muito medo, por isso devem ser maus. Não consigo filmar a história mágica escrita nos olhos sem palavras destes homens maus, o pó que lhes molha a pele e as mãos também nada diz, devem ter ficado mudos vivos, uma espécie de mordaça da alma, talvez só lhes falem as pernas e por isso é que não trabalham e vagueiam todo o dia, rua acima, rua abaixo, enquanto os braços pendurados falam com a miséria e enganam a existência. Não sei, mas deve estar tudo nos telejornais. Nenhum deles me conta nada por isso vou continuar a falar com o céu e com a água, a esta hora consegue-se ver o fundo de tudo. Eu também devo ser má porque não concedo aos homens maus existência fora do meu olhar fixo, pelo menos o direito a não serem olhados fixamente, olho-os como se fossem animais numa jaula, como se eu tivesse pago um bilhete que me dá o direito de os olhar assim.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Pedinte

Este Inverno também há-de passar;
olho lá para a frente,
para a nova Primavera que chegará:
o que sobrou, então, de mim,
o que consegui despertar
e o que permaneceu enredado
no arame do sono, um mendigo em redor
dos últimos raios de paz?

A palavra nova (Autista)

Invariavelmente, a dor
quando me percorro no passado:
anos atrás, menos um dia, mais um,
encontro-me pequena, naquela escola;
mas a palavra nova vem apaziguar
e digo-me que não faz mal, nós
vamos ficar bem, afinal tudo vai passar
tudo nos vai trazer aqui. Não chores mais,
nunca mais, criança-eu. Sento-me no colo meu,
olho para mim, não faz mal, não faz mal,
o tempo nos trará aqui,
aqui, ao agora,
onde o abraço da paz me encontrou
de braços abertos para o pequeno eu de mim.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Humanométrico

O poema não pode ser demasiado grande
nem demasiado pequeno
só pode ter precisamente o seu tamanho
o dele é o único tamanho certo
Não, não há poema exacto
porque o poema é um filho estranho
do homem que é humano
mas que, entre versos, se mede.

De Menina De Estranha a Senhora De Asperger

Não, ainda não consegui ouvir a minha voz
ainda não consegui ouvir-me
mas já a vejo, ela já espreita
encostada ao espelho meu
sim, já a vejo, ela abre os braços
e espreita-me à porta do meu nome
Agora que a vejo, já sei mais quem sou,
já sei que também eu sou,
já sei que, afinal, até eu tenho uma explicação,
até eu, mesmo tão estranha, mesmo tão peculiar,
posso, por fim, entender-me, definir-me,
perdoar-me tanta dor, perdoar-me as tentativas,
porque eu não sou quem eu não sou:
eu sou a voz, sou ela que se mostra, agora,
hei-de vê-la bem, ouvi-la ainda melhor,
há-de fundir-se em mim, somos uma,
e o perdão nos seus olhos, há-de ser o meu,
se eu me perdoar, penso que o mundo
também me perdoará. Sim, talvez eu não seja,
como sempre suspeitei, uma pessoa
de carne e osso, a expressão no meu rosto
paralisa muitas vezes, pendurada no cabide da confusão,
nem sempre sei o que sentir, mas sinto tudo, sinto tanto
que talvez exista uma pessoa, que é a que me espreita,
escondida bem fundo, no fundo da carne e do osso
do corpo estranho e perplexo de mim.